terça-feira, 24 de novembro de 2009

O MAGUSTO EM CASA DA BISAVÓ ANGELINA



A perna de borrego assa no forno a lenha enquanto o gato, preto como a noite, se aquece, praticamente encostado à panela da sopa de couves verdes segadas durante a manhã no quintal, para ser comida como entrada, com um garfo na mão direita – com as couves enroladas como spaghetti – e um naco de pão de milho com chouriço na mão esquerda, a acompanhar e dar “substância”. As castanhas que irão guarnecer a carne estão a ser cozinhadas num molho que até hoje nunca consegui imitar, porque a receita morreu junto com a bisavó. O pêlo do gato começa a arder. Parece as bruxas, condenadas antigamente à fogueira, pelo Santo Ofício. Quando o lume lhe chega à pele, desata a correr pela cozinha de terra batida, soltando miados aterrorizantes, capazes de acordar todos os mortos do cemitério. A bisavó atira-lhe uma bacia cheia de água gelada e o animal esconde-se, ensopado, debaixo de um dos compridos bancos de madeira da mesa da cozinha. Mais tarde, voltará a postar-se junto das panelas para secar o pêlo, para não ficar com bronquite. A bisavó recorda o tempo em que preparava carne de javali - naquele tempo os porcos selvagens abundavam na região e a bisavó chegou a domesticar alguns, criando-os de pequenos para matar e fazer chouriços, que tratava no fumeiro – com castanhas por altura do São Martinho, altura em que se encontrava grávida de gémeos. Lembra-se como se fosse hoje da queda que deu enquanto transportava o cesto do pão que distribuía pela aldeia. A gravidez ia no sétimo mês e não chegou a completar o tempo previsto. Um dos gémeos nasceu morto. Mesmo assim, conseguiu aguentar quase dois meses com um filho morto na barriga. Quando nasceram, o mais pequenino e mirrado foi quem sobreviveu. Chamaram-lhe Mário. O outro, gordo e lindo, nasceu sem vida com uma evidente contusão na cabeça, de onde já saíam vermes. A bisavó Angelina recorda as febres que se seguiram ao nascimento, as lavagens e as mezinhas feitas e elaboradas pela parteira. Sobreviveu. A bisavó suspira, enquanto vai buscar o vinho tinto verde, feito com as uvas da ramada do quintal, à adega. A bisavó não gosta de jeropiga. A Tia Lucinda, irmã mais velha do gémeo sobrevivente, chegará, vinda do Porto, com a sobremesa: pudim de castanhas e marrom glacê, receitas aprendidas em casa do Douto, onde trabalha como criada de servir lá para os lados da Sra. da Hora. Está na hora de pôr a mesa. A mãe, a trisavó Ludovina, do alto dos seus 102 anos, abre subitamente os olhos míopes, por detrás das lentes encavalitadas na ponta do nariz adunco e indaga, varada pela fome e pela gulodice: "Então, Lininha? As rabanadas já estão prontas? Já deve estar quase na hora da missa do Galo…”

Memórias de Black Desert Rose

Escrito por Claudia Sousa Dias, do blogue Rendez-vous
 
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10 comentários:

  1. Olá Claudia!
    Pobre do gato,lol..eles são danados,sempre à procura do calor,depois dá nisso...gato escaldado...A história é emocionante do princípio ao fim.Ficamos a pensar na queda e no parto aflitivo...mas depois temos a imagem ternurenta das meninas séniores e da trisavó a pedir rabanadas :)

    Jocas gordas
    Lena

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  2. Boa a descrição, mas! Bom texto, envolvente, mas! Mas, “Onde é que está o Wally?”, quero dizer “Onde é que está o magusto?”.
    É sabido que há muita coisa de que eu não sei nada e isto de magustos, já aqui o disse, é uma delas. Procurei e só o consigo ver no título do texto. Pode ser que eu seja “ceguinho” (que o diabo seja surdo) ou pouco mais enxergue do que a trisavó Ludovina, que já via o Natal! Perdoe-me a irreverência, mas cá vai o meu comentário!


    Este texto era suposto
    falar-nos duma festa.
    Foi outro o seu gosto
    e eis o que nos resta.

    Que haja gato, eu não estranho,
    e preto também não se estranha
    porém, uma coisa eu não apanho,
    será que alguém comeu castanha?

    Eu entendo, cá para mim
    e pelo que a gente vê,
    de castanha, só pudim
    e mais o marron glacé!

    Ainda vá, que o gato miasse,
    e aí não haveria mistério,
    mas que o miado acordasse
    lá o pessoal do cemitério...

    E, ver o gato, queimado,
    a ser tratado assim!
    Com um banho tão gelado
    ficar feito um pinguim!

    As mezinhas, da idade média,
    tomadas certas, como convém,
    evitam gravidez de tragédia.
    Mãe e um filho estão bem!

    Fala de avós e bisavós,
    que é sempre bom recordar!
    Isso acontece a todos nós
    e a todos faz suspirar!

    E, bem acima disto tudo,
    está a trisavó Ludovina!
    Uma idade, digna de estudo
    dos senhores da medicina!

    Para estas gentes de antanho,
    que deram a alma e o coração
    e alcançaram um tal tamanho,
    é que vai a nossa admiração!

    Perdido na história, enfim,
    à conclusão ainda não chego
    e já estou a chegar ao fim!
    E o que é feito do borrego?

    Minhas palavras acabadas,
    é agora que eu me calo!
    Venham lá as rabanadas
    e vamos à missa do Galo!

    Mas, ou eu muito me engano
    ou estarei a ver mesmo mal.
    Então, será que este ano,
    isto não é lá pr’ó Natal?

    João Celorico

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  3. posso responder a isso.

    o magusto está a ser preparado pela bisavó, o jantar vai ser servido em família.

    o Magusto - e a sua preparação, em casa - serve de cenário e pretexto para evocação da memória. das memórias da minha avó.

    há mais memórias na família ligadas ao Magusto, ma são tristes por evocarem perdas afectivas.

    por isso desta vez deixei-as no passado.

    csd

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  4. mais: a trisavó Ludovina, nesta cena mostra já estar em avançado estado de senilidade pelo que confunde as épocas do ano. o que tendo em conta a idade será perfeitamente normal...

    penso que é perceptível


    a perna de borrego está a ser preparada para o jantar. está na panela à espera que as pessoas cheguem para a comer mais às castanhas....


    csd

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  5. Com isto tudo,fiquei com fome...De repente senti saudades dos assados nos antigos fornos à lenha...do cheiro á perna de borrego...hummm

    Jocas gordas
    Lena

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  6. :-)

    tenho um estilo divergente, eu sei...

    mas há aqui textos muito bons

    dois em particular de que gosto muito.

    é verdade!

    já posso votar!

    OBA!!!

    csd

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  7. Claúdia gostei da descrição da vida doméstica,com a peripécia do gato queimado,mas arrepiei-me toda com a história do gémeo que não vingou.
    Boa sorte
    Beijinhos
    Alcinda

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  8. é 100% verdadeira,Alcinda.


    a minha avó e as irmãs repetiam-na vezes sem conta...


    csd

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  9. Um texto muito interessante. Digno da pena de um bom escritor. A história do gémeo morto dois meses, e com vermes não é credível, mesmo que as avós o garantam. As pessoas têm tendência para aumentar os factos, com o passar dos anos, e de tanto o repetirem, convencem-se que é verdade.
    Uma tia minha morreu com uma infecção generalizada, precisamente porque o feto morreu e ela não procurou médico ou parteira. Era muito nova, ignorante dos sintomas, quando foi levada ao médico, ainda a mandaram para o hospital em Coimbra, mas já não foi a tempo.
    Um abraço e boa sorte.

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  10. Olá Cláudia
    As castanhas cozinhadas naquele molho que ia guarnecer a carne, seguidas do tal pudim de castanhas e marrom glacê, davam cá um senhor magusto...! Até eu comia!
    O gato escaldado, a fugir do lume e a levar com uma bacia de água fria em cima do lombo, trouxe muita animação ao seu texto!

    Aquele taramelar sobre partos difíceis está perfeitamente sintonizado com o tempo, os costumes e a idade daquelas três mulheres.
    Compreendo perfeitamente a confusão da trisavó de nariz adunco! Pudera! Com 102 anos de idade! Ela esqueceu-se completamente das castanhas. Pensou que já era natal e desatou a pedir rabanadas! O mais engraçado desta história é que a Cláudia terminou logo ali o filme. Fez isso de propósito! Colocou-nos a todos no lugar da Ludovina! Deixou-nos por aqui, desorientados, à espera das castanhas!
    Belo texto!

    A bisavó Angelina, a tia Lucinda e a trisavó Ludovina são personagens da sua história que bem merecem esta homenagem!

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