Tive a sorte de acompanhar de perto, quando não na primeira pessoa, algumas das principais transformações ocorridas nas últimas décadas na vinha e nos processos de vinificação, assim como ao nível da comercialização das uvas ou do vinho. Refiro-me, naturalmente, à forma mais tradicional de produzir vinho e de vinificar, identificada com pequena parcelas, onde cada videira tinha a sua casta; e identificada igualmente com lagares de pedra, cubas de cimento e sobretudo com as famosas pipas (ou pipos), responsáveis por um intenso labor nas tanoarias, das quais aliás vinham também as dornas.
A minha juventude foi marcada por algumas mudanças, aparentemente de pouca monta mas com profundas influências no tecido social e nas vivências comunitárias. Recordo-me que gradualmente as uvas deixaram de ser transportadas em dornas, o que implicava a existência de uma junta de bois, para serem transportadas em gamelas e posteriormente no seu sucedâneo em plástico, os poceiros como o povo lhe chama. Se é um facto que a vinha deixou de ser central na economia familiar de base rural, também se perdeu uma importante dimensão imaterial ligada à vinha e ao vinho. Estas e outras pequenas transformações alteraram, nomeadamente, o ritual das vindimas, que outrora como que sacralizava os laços familiares e de vizinhança, à semelhança da casca do milho festejada na desfolhada. Em cada cantiga sobravam uvas, mas em cada cesta ou cesto não ia apenas o som, ia também o sentido e o tom de uma comunidade. Na última dorna não ia apenas um desígnio de dever cumprido, ia a celebração das colheitas e da vida de quem nela participava, que no dia seguinte se repetiria na vindima de um familiar, vizinho ou compadre.
Actualmente tenho o privilégio de ver de perto o esforço levado a cabo por dezenas de viticultores nas últimas décadas: o momento de viragem, as dificuldades, a paixão pela vinha, o ainda tímido contributo para a criação de uma imagem da região do Dão e do vinho da região, indissociada do queijo, das serras, dos rios, das pessoas. É um facto, que a realização do projecto Património do Vinho e da Vinha da Região Demarcada do Dão, que no âmbito da APARDÃO execute com o Jorge Esteves, me permite conhecer de perto uma nova realidade. ainda assim, não por mera nostalgia, mas por preocupação social, não deixo de olhar para o lado. Da campanha passada reservo a imagem de vários tractores agrícolas à espera junto às cooperativas para deixarem as uvas, creio que com menos romantismo e mais dramatismo. É do conhecimento público, por um lado, o envelhecimento da população e, por outro lado, o facto dos custos de produção não trazerem benefícios a ninguém. Sem me querer meter da discussão dos apoios que o Estado possa dar, nem na questão do pagamento atempado ou não por parte de quem adquire as uvas, não deixo de me preocupar com o futuro da região como um todo. Sou adepto da tese segundo a qual é necessário ter vinhos de gama média para daí sobressaírem vinhos muitos bons. E do ponto de vista estritamente sócio-económico é no mínimo incompreensível fechar os olhos ao abandono dos campos, dá ideia que vamos todos trabalhar no sector dos Serviços.
Escrito por : José Gomes Ferreira do blogue Associação para a Promoção da Região do Dão
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Para a história do vinho, aqui vai:
ResponderEliminarMemórias do vinho,
preocupações da vinha.
Em ambos eu alinho.
Quem é que não alinha?
Sem ler essas memórias
tudo nós esqueceríamos.
Havia vinho sem histórias
e da vinha nada sabíamos.
Há para aí muita gente,
do vinho sem preocupação.
Aqui tudo é diferente.
Aqui até há a APARDÃO!
João Celorico
Caro José Gomes:
ResponderEliminarObrigada pela sua participação na aldeia da minha vida. Ficámos mais enriquecidos e a saber sobre a História do Dão.
Abraço, Susana