Sei que era suposto eu falar de verdes campos, de suados e infindáveis trabalhos agrícolas, das velhinhas de amargurado e saudoso negro, dos omnipresentes animais e de toda a panóplia de sons, cores e sabores de uma qualquer aldeia portuguesa. Não o irei fazer… Lamento, mas não é possível moldar recordações para que correspondam a um padrão ou às expectativas alheias. As recordações mais marcantes que guardo das “idas à terra”, do tempo passado numa aldeia, ocultam-se dentro de uma pétrea construção do ido ano de 1934, casa principal da quinta da minha família materna e situada nas Termas de S. Pedro Sul. Correndo o risco de causar ainda mais estranheza aos leitores, sigo directamente por um corredor e afasto-me ainda mais dos espaços abertos e verdejantes. Rodo novamente a velha maçaneta de vidro verde e latão e fecho-me numa só divisão dessa casa. Sozinho. Ali estava a grande mesa de madeira, sempre majestosa e impondo-se de forma arrogante, apesar de eu saber como era trémulo o seu tampo, ao qual faltava a devida manutenção. Sobre ela repousava um jarrão de loiça tradicional, que eu considerava feio, apesar de eu naquela época viver numa década bastante flamboyant… Do lado esquerdo da mesa, um cadeirão de dois lugares de aspecto frágil, com as molas já a surgirem através do coçado veludo, parecendo que o conjunto se iria desmembrar espalhafatosamente a qualquer momento. Ao lado, um móvel sempre fechado à chave, sobre o qual estava um grande rádio Telefunken, uma obra de arte vinda de tempos menos uniformizados. Eu gostava de o ligar só para ver a sua impressionante iluminação. E, apesar de tudo parecer funcionar na perfeição, ele nunca abandonava a sua mudez. Porquê? Aquilo parecia quase teimosia do vetusto aparelho… Ter-se-ia cansado? Será que não gostava das ríspidas melodias daquela altura? Ou seria… pura solidão e saudade?... As paredes estavam repletas de quadros sem cor com pessoas muito sisudas que eu não conhecia. Por vezes era assustador… Parecia que me iam repreender a qualquer momento! Valiam-me os rostos que eu reconhecia e um grande quadro com a derradeira Família Real portuguesa. Ainda estava longe de conhecer a sua tragédia e achava-os simpáticos com os seus engraçados bigodes. Do outro lado da sala, o verdadeiro tesouro! Pelo menos para mim… Uma antiga secretária embutida num conjunto de estantes que cobriam toda aquela parede. Haviam ali centenas de livros de várias épocas, alguns já degustados pelos incultos bichos do papel, essa raça perversa e covarde. Mas o que eu realmente gostava era de me sentar na secretária e de remexer cuidadosamente nas várias gavetas. Eu até já sabia o que lá estava, mas era sempre como se fosse a primeira vez… Tudo permanecia como alguém havia deixado à muitos anos. Era estranho… Ali estava a fotografia do homem a quem tudo aquilo pertencera, o meu bisavô. Duas canetas de aparo permaneciam sobre um pequeno suporte de mármore, ao lado do mata-borrão e dos tinteiros já secos. As gavetas estavam cheias de recibos, postais, dinheiro, cartas por enviar e muitas fotografias, entre outras coisas mais banais. Não havia ali nada recente, nada que revelasse a existência das últimas décadas. Porquê? Porquê aquela descontinuidade, aquele abandono? Porque se abstivera a vida de, a partir de um determinado dia, entrar naquela divisão? Qual seria o segredo silenciosamente guardado entre aquelas paredes? Eu não tinha a coragem de perguntar a ninguém… Além do mais, queria ser eu a descobrir sozinho! Seria isso? Teria o passado conspirado para que eu descobrisse esse enigma? Mas eu era apenas um miúdo…
Naquela casa havia uma porta que dava acesso a uma máquina do tempo, a um mistério que me fascinava. Seria esse mistério apenas curiosidade exacerbada pela imaginação infantil? Talvez! Ou talvez não…
Naquela casa havia uma porta que dava acesso a uma máquina do tempo, a um mistério que me fascinava. Seria esse mistério apenas curiosidade exacerbada pela imaginação infantil? Talvez! Ou talvez não…
Escrito por Pedro Ventura
S.Pedro do Sul/ Viseu
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Muito bom este texto :)
ResponderEliminarescrito pelo próprio tem logo o seu valor sentimental. Excelente!
Parabéns.
Beijinho
Nota-se que este texto simples mas incomum é do Pedro Ventura, um dos escritores mais promissores da actualidade. Vai para ele o meu voto.
ResponderEliminarLurdes
puppy_1999@hotmail.com
Eu voto no texto chamado Impressões da autoria de Pedro Ventura.
ResponderEliminarAss: Andreia Torres
thesonsofthemist@hotmail.com
"Animus habitat in auribus." XXX
Sempre no seu auge!! Este escritor, tem-nos vindo a surpreender dia após dia, revelando agora, com este pequeno texto, uma outra valência do seu EU literário!!
ResponderEliminarO meu voto vai para este texto "Impressões" da autoria de Pedro Ventura!
C.M.P.
Todos os participantes/votantes estão de parabéns, pelos comentários e respectivos votos deixados ao Pedro.
ResponderEliminarQuero apenas relembrar, que:
Só vou contabilizar os votos deixados nos respectivos espaços de comentário de cada post, se apresentar a seguinte frase:
Eu voto no texto chamado (...) da autoria de (...). assinado (Identificação do votante: Nome e Blogue(com respectivo link) ou e-mail).
Obrigada pela compreensão.
Continuação de boa blogagem!
Susana Falhas
Eu voto no texto chamado "impressões",
ResponderEliminarDa autoria de Pedro Ventura.
Cristina Amorim (Pandora)
bonecosdepano.blogspot.com/
cristinacostamorim@hotmail.com
Parabéns, Pedro pela sua postagem. Texto bem escrito com muita nostalgia da sua meninice!
ResponderEliminarObrigada por contribuir com a sua criatividade e talento, nesta blogagem. Certamente que ficou mais rica!
Um abraço,
Susana Falhas
Eu voto no texto chamado Impressões,
ResponderEliminarDa autoria do Pedro Ventura.
HERON
http://mdrn2008.blogspot.com/
Um lugar de sonho, sim senhor! Dou comigo a imaginar quantas lembranças, quanta mística encerram as grossas paredes dos rústicos palacetes de S. Pedro do Sul.
ResponderEliminarNão, não se trata de simples curiosidade infantil. São as paredes, as ruas, os telhados que parecem quererem contar-nos algo.
Pedro ventura, acho que fiquei com vontade de transpor essa porta que nos separa do passado ... adoro tentar decifrar enigmas. Um texto bem interessante :)*
Voto no texto chamado Impressões,
ResponderEliminarDa autoria de Pedro Ventura.
assinado: Anabela
mail: anabela79@gmail.com
Voto no texto chamado "Impressões" da autoria de Pedro Ventura.
ResponderEliminarAssinado: Daniel
Mail: dml@portuguesa.org
Eu voto no texto "impressões" de Pedro Ventura.
ResponderEliminarRoberto Mendes
Correiodofantastico.wordpress.com
Ou talvez não... o certo é que gostei deveras deste desfiar de recordações.
ResponderEliminarVoto no texto chamado 'Impressões'.
De autoria do Pedro Ventura.
PiresF
www.espreitador.blogspot.com
belo texto!
ResponderEliminarcomo o amigo Pires, voto também em "Impressões" de um tal "pedro ventura", que me parece um autor muito muito promissor, cujo nome há ouvi algures...
Um olhar de criança vendo o caruncho do desfiar dos dias mortos em vida de alguém... Só podia ser do Pedro... :)
ResponderEliminareu voto no texto "Impressões" da autoria de Pedro Ventura.