quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

MEMÓRIAS DO CARNAVAL


As minhas primeiras memórias do Carnaval foram passadas em Lisboa. E não foram muito agradáveis. Nasci e fui criada numa época em que as meninas não tinham a liberdade que têm nos nossos dias e assistia às brincadeiras e aos desfiles de mascarados a partir da minha janela. Com outras meninas atirávamos serpentinas duma janela para a outra e as ruas ficavam assim enfeitadas, mais alegres e coloridas. No entanto, logo apareciam grupos de rapazes que, com sacos de serradura, as rebentavam e gozavam connosco.

Se por acaso saíamos à rua éramos de novo o alvo preferido deles. Corriam atrás de nós, de bisnaga em punho, encharcando-nos e atirando-nos farinha. Outras vezes enfiavam-nos papelinhos na boca ou atiravam-nos estalinhos e bichas de rabiar às pernas. Isto para não falar nas garrafinhas de mau cheiro, que partiam e inundavam a rua com um odor insuportável.

Algumas das minhas vizinhas participavam com a família em “assaltos”, que eram bailes onde iam devidamente mascaradas. Eram princesas, fadas, minhotas, ciganas, saloias, e tudo o que a imaginação e carteira dos pais podia comprar. E depois, aquela pequenita que passava junto à minha janela vestida de espanhola... O que eu gostava daquele vestido vermelho à bolinhas, das castanholas, da mantilha e do leque que ela orgulhosamente abanava.
E eu, filha de pessoas humildes não tinha possibilidades para comprar ou alugar um fato de Carnaval, quanto mais ir a festas...

Mas, a partir de certa altura, os meus pais começaram a ir passar as férias do Carnaval à aldeia, onde tudo era diferente. Até no nome. Chamavam-lhe Entrudo.
Como era um meio pequeno, já me deixavam andar pela rua e eu juntava-me com os outros jovens. Vestíamos roupas velhas e púnhamos uma meia na cabeça apenas com dois buracos no local dos olhos, para ninguém nos conhecer. Normalmente, os rapazes vestiam-se de raparigas e vice-versa. Ali eu sentia-me feliz pois não havia princesas, nem fadas, nem ciganas, nem minhotas e nem sequer me lembrava mais da menina vestida de espanhola. Éramos todos igualmente feios, trapalhões, desajeitados, mas divertíamo-nos de igual modo. Percorríamos as ruas da povoação fazendo barulho junto das habitações, abríamos as portas e atirávamos objectos lá para dentro, fazendo uma enorme barulheira tentando assustar as pessoas. No entanto, elas já estavam à espera dos entrudos e riam, batiam palmas e tentavam descobrir quem eram os mascarados. Enfarruscávamos e assustávamos com paus, quem passava por nós, acabando o dia num grande bailarico. Na minha aldeia, hoje quase deserta e envelhecida já não se brinca ao Entrudo. Resta-nos apenas divulgar estas e outras tradições para que não caiam no esquecimento. É isso que fazemos.

Escrito por Lourdes Martinho, do blog O Açor

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7 comentários:

  1. Olá Lourdes!
    Recordar costumo eu dizer que é viver. Mas tendo em conta certas recordações,talvez não seja assim tão bom. Um Carnaval cheio de alegres brincadeiras, com bons bailes de Carnaval, para adultos jovens e os mais pequenos. Mantendo as mais fieis tradições, tudo eram maravilhas. O mais desconcertante era não haver condições financeiras para podermos realizar as nossas fantasias. Mas restava sempre o baú das roupas velhas, e assim com a ajuda dos familiares mais velhos,podermos ter as nossas mascaras de Carnaval. E sem ironias muitas vezes saiam verdadeiras obras de arte, dignas de um verdadeiro mestre.
    Gostei imenso da descrição que faz do seu Carnaval de antigamente.
    Mas não tenho ilusões, que além de toda a humildade em que era vivido o Carnaval dos nossos tempos de jovens,era bem mais divertido e real que o Carnaval comercial que hoje se faz em muitas zonas de Portugal.
    Vai-se o Carnaval! ficam as tradições
    Um abraço
    Acácio

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  2. Olá Lourdes!
    Gostei bastante do seu texto.Penso que os meus pais também tiveram um Carnaval parecido com o seu,mas como sairam de casa,muito jovens,pré-adolescentes,para trabalhar,o Carnaval durou pouco.
    A sua descrição transportou-me numa rua,com 1 menina à janela a ver passar a outra de espanhola e depois partiu feliz para a aldeia onde haveria os verdadeiros amigos para brincar ao Carnaval.Bonito e sentido texto.

    Jocas gordas
    Lena

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  3. Olá, Lourdes!
    Cá vai a minha contribuição!

    Da janela via sol, via lua,
    serpentinas por todo o lado.
    Naquela rua, que era a sua,
    passava um mundo, mascarado!

    Fazendo as serpentinas
    na rua efeitos capazes,
    p’ra arrelia das meninas
    as destruíam os rapazes.

    Chama-se a isto Carnaval
    mas não pode valer tudo.
    O valer tudo, parece mal
    se só rimar com Entrudo!

    Carnaval, é diversão
    não é nenhuma guerra,
    é só criar uma ilusão,
    tirar os pés da terra!

    E entristecida olhava
    para aquela espanhola
    que na sua rua passava
    a bater a castanhola!

    Devia ser muito bonito
    andar assim vestidinha
    com vermelho vestidito
    e tanta branca bolinha!

    Embora a ideia fosse pura
    a verdade era ainda mais
    e a vida era muito dura
    já lho diziam seus pais.

    Nem tudo é mau, afinal.
    Vida muda, volta e meia!
    Foi brincar ao Carnaval
    mas lá p’rá sua aldeia.

    Pôr na cabeça uma meia
    e na barriga, almofada,
    essa máscara fica feia
    mas fica uma mascarada!

    Havia grande felicidade,
    sem princesas nem fadas,
    havia em tudo só amizade
    e máscaras desajeitadas!

    Este Entrudo, trapalhão,
    divertido, sem ser rico,
    fazendo jus à tradição,
    terminava em bailarico!

    Abraço,
    João Celorico

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  4. Excelente narrativa!
    A Lourdes coloca, lado a lado, a vivência dum Carnaval desinibido (atrevido) da capital e o Entrudo da aldeia pacata dos seus pais, no interior do país. Põe em confronto a rebeldia do meio urbano com a simplicidade do meio rural, relativamente ao despesismo e às boas práticas duma boa economia doméstica: em Lisboa, os rapazes davam cabo das serpentinas que as miúdas lançavam; na aldeia todos vestiam roupas velhas.
    Em Lisboa:
    “Eu, filha de pessoas humildes não tinha possibilidades para comprar ou alugar um fato de Carnaval, quanto mais ir a festas...”
    Na aldeia:
    “Ali eu sentia-me feliz pois não havia princesas. Éramos todos igualmente feios, trapalhões, desajeitados, mas divertíamo-nos de igual modo.”
    É um texto delicioso, ilustrado com uma matrafona a rigor!
    Parabéns, Lourdes.
    Um beijo.

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  5. Cruzes canhoto!

    Eu juro que não sabia
    Que o Entrudo era casado
    Com uma tão feia e esguia
    Que mete medo ao Diabo!

    Mas um Carnaval assim
    Alegre e tão divertido
    Dá-me saudades a mim
    Mesmo sem o ter vivido

    Texto delicioso! Cada vez gosto mais daqui :))

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  6. Olá meus amigos
    O meu computador está com o tempo e tenho faltado aos comentários.
    Agradeço a todos vós os simpáticos comentários.
    Parafraseando a nossa Cusca Endiabrada " Cada vez gosto mais daqui.
    Beijinhos
    Lourdes

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  7. Adorei seu texto !
    Essa diferença existente nos diversos meios sociais dói muito para uma criança. Em vários momentos da minha vida de criança também senti-me deslocada, desconfortável e inibida.
    O tempo nos dá o remédio para esses males...
    Beijo

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