Meio-dia. Quarenta graus à sombra. As moscas atacam tudo o que mexe. Cheiro ácido a porco vindo da loja dos fundos. As primas já cá deviam estar para brincar aos médicos entre presuntos obscuros na cave brigantina. Na casa ao lado, o meu tio-avô Abílio, mantinha uma loja com rentável estacionamento para burros em trânsito com pessoal de Gimonde, Carrezeda e Sacóias. Depois do almoço a rua estalava de calor. Volta esforçada até ao “Café Leão”. Saturação de tabaco. Barulheira de “Cimbalino” no expresso de bicas suadas. “Que grande que ele está”... “Cada vez mais igual ao pai”... “Então sempre queres ser médico quando fores grande?”. Grande já eu era. Tinha 13 anos e, francamente, não tinha a mínima vontade de ser qualquer coisa. Queria era sair dali... E as primas nunca mais vinham, porra!
Setembro. Todos os anos era raptado em plenas férias grandes. Que estava eu a fazer naquela pasmaceira? Subtraído à moderna Nova Oeiras. Precocemente sacado às namoradinhas de praia. Contrariado até ao fundo do meu ser?!
40 Setembros passaram. Muitas moscas morreram... familiares também. Já não há casa de granito. As primas já não querem brincar aos médicos. O “Café Leão” é agência bancária. O castelo ergue-se agora entre desvairada especulação imobiliária. Eu sobrevivo numa outra pasmaceira esperando por um Setembro qualquer que me há-de levar.
Escrito por : JORGE PINHEIRO, do blogue Expresso da linha
Terra: Bragança (Distrito) , Portugal
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ai as brigantinas brincadeiras de futura medicina
ResponderEliminarai os quartos de bácoro enrolados em salmoira
ai os meus quartos a doerem da gota
prima
Sentimos o calor a morder na pele com a "voz", tão expressiva, deste narrador.
ResponderEliminaratribuí-lhe o segundo lugar neste passatempo...
cláudia de sousa Dias
CSD
O ontem e o hoje, presos por um frágil fio condutor de recordações gravadas para sempre na nossa memória. Para mim o melhor texto, aquele em que votei.
ResponderEliminarelvira carvalho
Olá! Vim agradecer o seu contributo para a blogagem . Bragança é deveras uma cidade linda, que vale a pena visitar, mesmo com as altas temperaturas, que habitualmente atingem nesta época do ano, especialmente no interior. gora a história de infância que contas é um mimo!
ResponderEliminarParabéns pela postagem!
Abraço, Susana
Quanto a mim, foi você, Jorge Pinheiro, quem melhor soube representar o espírito das férias, lá numa terra distante, que também é a sua, porque fonte das suas origens. Dizer que o local é bonito, no qual se respira o mais puro ar, ou cuja gastronomia é de comer e chorar por mais, é muito vago, vago demais, porque todos os lugares, que permanecem no coração de cada um de nós, são assim! Por isso, o importante aqui, seria, transmitir um sentimento, que se reflectisse no leitor! E você consegui-o, brilhantemente! Além do mais, com humor, que é disso que todos precisamos - de sorrir - ao mesmo tempo que fomos reportados, também nós, aqui deste lado, para as nossas recordações, de algum momento de umas nossas férias, em que fomos especialmente felizes. Apreciei a sua irreverência! Posto isto os meus parabéns!
ResponderEliminarAqui vai o meu comentário:
ResponderEliminarPOR TERRAS DE BRAGANÇA
Da cabeça não me sai
“o comentário melhor”,
o meu, amigo, aqui vai,
apanhe-o se faz favor!
Que férias tão animadas
que este senhor nos ensina,
chegar-se a primas, chegadas,
para aprender Medicina.
Terá sido engraçado,
por aquilo que eu noto,
mas esteja descansado,
não vai levar o meu voto!
João Celorico
É meio-dia, mas devia era passar das duas da tarde, com aqueles quarenta graus à sombra! Com esta temperatura, as moscas atacam o que mexe e sobretudo o que está quieto. Por isso, o menino Jorge estava ansioso que as primas chegassem. Não era por causa das moscas, não, que naquela cave escura e fresca, incomodavam bem menos. Era por causa dos movimentos que o brincar aos médicos, e fatalmente aos doentes, sempre originava. Ele ainda tinha na memória, como se fosse ontem, a última consulta do ano anterior. Foi quando ia auscultar a prima Zézita. Dizia que lhe doía ali no peito...A prima estava ruborizada, lá isso estava...E ele estava mortinho para saber o que fazia à prima o peito doer!
ResponderEliminarEis, nisto, um alarido de sirenes e de correrias: FOGO!
Claro, a consulta médica teve que ficar adiada para este Setembro!
Ainda doerá o peito à Zézinha?
Conhecemos estórias do J.P há mais de um ano.
Seja a da bola de Berlim na praia, seja também aquele guarda-sol que, arrancado por uma rajada, vai aos trambolhões pelo areal fora ávido por encontrar umas costas onde se cravar, seja a sua aldeia ou o tema que for, JP tem sempre uma forma inesperada de abordar o assunto.
As suas habilitações académicas deram-lhe os conhecimentos para brincar com as ideias e com as palavras.
As mais diversificadas actividades desenvolvidas acima de tudo por puro gozo, permitem-lhe estar de qualquer dos lados dos balcões da vida como peixe dentro de água.
Pois é exactamente ao Jorge Pinheiro que eu atribuiria o Prémio desta Blogagem Colectiva do mês de Julho e, por isso e só por isso, estou a VOTAR NELE e eu a participar com este comentário no respectivo sector-
João: fico desvanecido com tantos elogios. Agradeço o voto, mas muito mais do que isso pelo que diz. Eu comecei a escrever para afugentar os meus fantasmas. Agora vejo que os fantasmas fugiram e ficaram pessoas que gostam do que escrevo. Ainda bem que há fantasmas!
ResponderEliminarMilu: gostei muito do seu comentário. Acho que apanhou na perfeição o que quis transmitir em poucas linhas.
Como eu me recordo dessas terríveis moscas, não as de Bragança mas as da aldeia do meu pai, embora a origem seja indiferente porque pertencem todas à mesma família, daquelas que picam o gado que está no andar térreo da casa e quando se passeiam pelo andar superior como não têm vacas nem porcos para atacar, mordem as nossas pernas, os nossos braços e tudo aquilo que puderem, não nos restando outro remédio senão agitarmos todo o nosso corpo como se estivessemos constantemente com convulsões, sendo muitas vezes necessário recorrer a palmadas porque a agitação nem sempre as assusta.
ResponderEliminarUm dos meus passatempos preferidos nas tardes dos domingos escaldantes de verão, era observar as moscas a tentarem devorar o meu pai e os meus tios que tentavam dormir a sesta após o almoço familiar. Chegava a contar mais de cinquenta moscas pousadas nos seus corpos suados, e eles completamente desmaiados de sono, lutavam com estes inimigos invencíveis que mesmo por cima de lençóis brancos insistiam no ataque.
Parabéns pelo texto. Gostei muito.
Adelaide Gomes
Ora vejam, como as estórias do J.P. despertam lembranças adormecidas, no caso , na Adelaide Gomes a quem também felicito pelo que nos transmite.
ResponderEliminarFicou-me gravada na memória a expressão "...desmaiados de sono,...".
Um bj.