sábado, 21 de agosto de 2010

Era uma vez...

http://br.olhares.com/serra_de_santo_antonio_foto2552895.html

Uma vez, em tempos já muito recuados, tive uma curiosa experiência que se aproxima do conceito de Turismo Rural. Acompanhei uma amiga da minha mãe numa visita a familiares, mais propriamente a um casal, seus tios, que viviam na aldeia de Serra de Santo António, na mesma serra que alberga nas suas entranhas umas das mais belas grutas de Portugal, senão mesmo as mais belas de todas… De manhãzinha, para lá nos deslocámos numa decrépita carreira. Naquele tempo as mal amanhadas estradas de Portugal eram calcorreadas por carreiras absolutamente deprimentes. Sempre muito velhas, sujas e fumarentas, arrastavam-se penosamente estrada fora aos soluços e arquejos, ameaçando constantemente sucumbir de vez numa qualquer subida um pouco mais íngreme. Felizmente que nunca aconteceu, mas vi muitas vezes jeitos disso. Acabadas de chegar ao nosso destino, avistei uma casa, pequena e atarracada, que ombreava com um curral quase do mesmo tamanho, no qual se acomodava um numeroso rebanho de cabras. Perante este desenfeitado cenário fiquei um tanto apreensiva, pois estava a contar com um fim-de-semana numa outra casa, que a minha fértil imaginação havia desenhado com contornos bem diferentes, a tender mais para um palácio do que para aquele que se me assomou um pobre casebre. Mas, contrariamente às minhas funestas perspectivas, foi naquele ambiente simples e desprovido de riquezas que pude vivenciar sensações únicas e que tanto me deleitaram! Este casal, precocemente envelhecido devido à dureza da vida, que lhe tisnou a pele e a alma, foram para mim de uma simpatia extrema! Durante aqueles memoráveis dois dias eu fui o seu ai Jesus… Era a menina para aqui, a menina para ali… E, como tal, tive direito às minhas barrigadas! Outra vez as barrigadas! A primeira foi logo no dia de chegada! Assisti à feitura de pequenos queijos com o leite das cabras do rebanho da casa, algo que nunca tinha visto até então. Para gáudio meu, os bondosos anfitriões puseram-me à vontade para degustar a tão apelativa iguaria. Pressurosa, acerquei-me dos ditos queijos que estremeciam por todos os lados e, sem cerimónias, atirei-me ao primeiro que comi de uma assentada, sem pão nem nada, assim mesmo como se fosse um pudim. Houve apenas um pormenor que me desgostou. Aos queijos, depois de apertados em chinchos de alumínio, era-lhes colocado por cima um pequeno montículo de sal. Ao longo do tempo, o sal desfaz-se e entranha-se no queijo, temperando-o harmonicamente, mas, como eu os estava a comer acabados de fazer, às tantas dava em trincar as pedras de sal, que, por conseguinte, não tinham tido tempo para se desfazer, coisa que me era extremamente desagradável, tendo em conta o meu apurado paladar de criança. Foi o bastante para não ter comido tantos queijos quanto desejaria! Mesmo assim não estive com esquisitices, não fosse parecer mal… Portanto, fiz as minhas honras dando ali o meu desbaste.

No dia seguinte, de manhã, bem cedinho, vivenciei outra experiência que me deixou maravilhada. Para o meu pequeno-almoço esperava-me uma malga de sopas de leite, acabadinho de ordenhar - foi o que me disseram - fofas e bem docinhas, tal como eu gostava. Às primeiras impressões pode parecer-vos estranho, que algo de tão trivial como umas sopas de leite, tivessem tido o condão de me deixarem história, mas deixaram! Estas sopas de leite foram na verdade especiais, porque enquanto as devorava gostosamente, uma maravilhosa sinfonia de guizos e balidos, qual música de fundo, aos meus despertos ouvidos chegava, vindo do interior do curral. Aquele momento foi para mim inaudito, porque me fez sentir na alma quão profundos são os mistérios da natureza – terra-mãe - com os seus sons, cheiros e milhentas outras manifestações. Afinal, até àquele instante, sempre que bebia leite, este tinha vindo até mim através de uma garrafa ou mesmo através da velha e amolgada leiteira de alumínio.

Mas o momento verdadeiramente inolvidável teve lugar na tarde do dia em que chegámos à serra. Ou porque os ares da serra me foram fortes e puxaram por mim, ou porque me havia levantado da cama muito cedo, fosse pelo que fosse, o certo é que fui acometida por uma terrível soneira, facto que não passou despercebido à dona da casa, que logo recomendou à sobrinha para que me fosse deitar. Mas eu envergonhada, porque fui educada para não incomodar ninguém, achei que não devia desfazer a cama antes de tempo, logo disse que não, que não tinha sono, porém, e felizmente, ninguém me acreditou.

Levaram-me para o quarto, que me pareceu um quarto para bonecas de tão minúsculo, como mobiliário apenas a cama e uma mesa à cabeceira, em cima da qual jazia um candeeiro a petróleo, na parte mais baixa, escondido, discreto, morava o envergonhado bacio. As paredes. Ah, aquelas paredes! Empoladas e alvas de cal fizeram-me sentir uma agradável e intensa sensação de frescura, que muito deve ter contribuído, para que assim que me enfiei na cama, tivesse tido a impressão de mergulhar numa imensa nuvem. Pudera! O colchão era daqueles muito moles e que cedem ao peso fazendo covas. Numa outra altura que não esta, este facto ter-me-ia incomodado, mas naquele dia foi o melhor que me poderia ter acontecido. Aquela cova na cama foi como um ninho, pois dormi que nem um passarinho!

Escrito por Milu, do Blogue Miluzinha.com

5 comentários:

  1. Olá Milu:
    Uma experiência rural inédita! Um texto arrebatador! Uma obra prima ao jeito da Milu!
    Um falar pitoresco, um escrever fotográfico que nos põe a VER porque não precisamos de ler. Por exemplo:
    "Os ditos queijos que estremeciam por todos os lados!...". Se fosse eu, diria "queijos frescos", porque não sei brincar tão bem com as palavras.
    Não me vou alongar.
    Como sempre, a Milu remata o texto com uma estocada de mestre. Desta vez, optou por uma frase em prosa poética: na cama foi como um ninho, pois dormi que nem um passarinho!.
    Piu, piu!
    A Milu já cá faltava!
    Parabéns por esta obra prima!
    Esta composição não ensina como se faz turismo rural. Ela mostra COMO É!
    Parabéns.
    Um beijo.

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  2. Como sempre, cheguei atrasada, e o amigo José Pinto tirou-me as palavras da boca !

    Delicioso seu texto, Milu !
    Saboreei cada palavra - e de muitas não sei o significado...
    Adorável relato que fez-me acompanhar, passo a passo, seu passeio rural.
    Eu também ficaria encantada com tal lugar e recepção.

    Parabéns !

    Beijo

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  3. Olá José Pinto!

    Ena, mas que elogio! :D
    Esta história, que representa uma altura da minha vida, tem tantos anos! Eu devia ter uns sete anitos de idade. Nem consigo compreender como foi possível esquecer-me do que fiz naqueles dois dias, em contrapartida lembro-me perfeitamente destes pormenores que aqui narrei. Parece que ainda estou a ver os queijos, muito brancos, a tremer, e as sopas de leite, tão saborosas, talvez por serem de pão caseiro e de puro leite de cabra. Sim! Porque aquilo que hoje bebemos e que compramos em pacote já não tem nada a ver.
    Quanto à forma como eu rematei o texto saiu de improviso, como gostei deixei ficar, mas, uma coisa é certa, terminar ou fechar uma narrativa até que é fácil, começar é que não. Se um texto começa mal, nunca mais é nada! :D
    Um beijinho


    Olá Flora!
    Muito obrigada por ter sido tão simpática. Acredito piamente que a Flora aprecie e saiba retirar prazer das coisas mais simples da vida, já li alguns textos seus, nos quais me foi possível retirar essas ilações. Afinal, nós somos muito daquilo que escrevemos!
    Um beijinho.

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  4. Sendo eu de relativamente perto, admito que sou uma apaixonada pela Serra D'aire e Candeeiros, muitas são as histórias que aquelas pedras poderiam contar que nem pedras da tradicional calçada portuguesa, mas uma coisa, garanto, a visitar, toda ela!
    Parabéns pelos texto Milu1

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  5. Subscrevo que o José Pinto disse: A Milú faltava aqui na aldeia!
    Bjs

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