Costumes e tradições não ficam alheios ao Tempo. As gerações humanas, na sua ‘evolução’ social, económica e cultural tendem a abandonar uns e outras, para implantarem os seus modernismos. É, foi assim, ao longo dos séculos. De quando em vez, por nostalgia ou cultura de preservação, lá vão aparecendo grupos a recuperarem o passado artístico, cultural, etnográfico, e outros, rememorando os seus antepassados, ora familiares, ora regionais, nacionais e pátrios.
As memórias da semana de Páscoa de Longroiva – a minha aldeia -, ainda denominada Vila de Santa Maria de Longroiva, no registo da Torre do Tombo, são as de um jovem, nas décadas de 60 e 70, do séc. XX. À época, a igreja católica, forte aliada da política do Governo, ainda determinava o pensamento e o comportamento da sociedade rural longroivense, maioritariamente analfabeta e iletrada.
Em geral, cada cidadão cumpria os preceitos religiosos, por crença e devoção: frequência dos actos litúrgicos; jejum de carne, durante a semana, especialmente nas Quinta e Sexta-Feira santas, com excepção dos que pagassem a bula – os de maiores posses (o pobre é sempre o desprotegido, até para a Santa Sé!); luto pela morte de Jesus Cristo.
Às minhas memórias aflora a figura de minha mãe. Vejo-a enlutada e de semblante triste. Saia, meias e sapatos, sempre pretos. Blusa e lenço da cabeça enramalhetados, em cinzento ou azul escuro – alívio de lutos familiares -, eram substituídos pelo preto. A casa, até ao meio-dia de Quinta-Feira, tinha que estar meticulosamente limpa: tarecos, louça, vidros, adornos, mobiliário, tudo desempoeirado e lavado; soalho esfregado com sabão azul, a preceito; paredes caiadas, do interior às de fora; terreiro mondado de ervas daninhas e muros forrados, coloridos e perfumados com ramos de escramboeiro; caminhos e ruas, em redor das casas, varridos e ervas desplantadas – as visitas e a comitiva da visita pascal hauria o cheiro a limpeza e perfume campestre. Quinta e Sexta-Feira eram dois dias de consternação, respeito e luto pela crucificação de Cristo. Minha mãe, entre os meio-dia de Quinta e Sexta, não mexia uma palha: cozinhava antes e apenas aquecia as refeições, e o pente alisava, só, as cãs alvas; as crianças eram proibidas de fazer barulho, nas suas brincadeiras; os terrenos cultivados ficavam de enxada e arado; a aldeia ficava paralisada no tempo e as gentes caminhavam absortas e em silêncio sepulcral. Nada era ábsono da vivência pascal-
Na tarde de Sábado, os jovens iam a casa dos padrinhos de baptismo recolher o folar. Essa prenda da minha madrinha Antonieta, sempre foi um bolo mais saboroso do que os de minha mãe, ainda que tivesse menos ovos. Cada fatia de folar, tão amarela como as gemas de ovo, era acompanhada de um farto pedaço de queijo de ovelha – da Serra – caseiro. A dúzia de folares que minha mãe cozia no forno público, a lenha de giesta e carrasco, durava umas semanas. O Domingo de Páscoa aspergia alegria nos corações das gentes. O povo inteiro assistia à Missa Dominical, com excepção de poucos, que se contavam pelos dedos: Lurdes, Eva, Casimiro, João, Manuel, são os nomes que ainda me lembro. Segunda-Feira era um dia de folga e descanso, para retempero das almas. Homens na Praça, mulheres no Tesinho, jogavam a tradicional e ancestral péla.
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Apesar de ter sido nascida e criada numa cidade grande no Brasil, nos tempos idos o respeito e a seriedade em momentos santos era muito semelhante aos das aldeias portuguesas.
ResponderEliminarEsses rituais estão fortemente enraizados na alma humana e fazem parte da própria vida.
Eu acredito que em tempos atuais, quando as tradições são deixadas de lado, em prol de uma pretensa modernidade, o homem também perde um pouco da sua alma, da essência que veio de geração em geração até os dias de hoje.
Viver em contato com a terra, seguir a lei das estações do ano, observar o ciclo da natureza é de vital importancia para a continuidade da espécie e o equilíbrio planetário e pessoal.
Sinto uma terna nostalgia ao ler os relatos das lidas antigas, especialmente em tempos de festas, e lembro da minha mãe contando o trabalho da família nesses preparativos, na sua aldeia em Portugal.
Paarabéns pelo seu belo texto !
Olá Urbelino!
ResponderEliminarO seu texto lê-se com enorme prazer, mesmo que haja tristeza, saudade, e vários sentimentos misturados, sentimo-los a todos. O retrato de um aldeia que ainda hoje luta para manter a sua beleza, história e grandeza.
Parabéns pelo seu belissimo texto.
Jocas gordas
Lena
Olá Urbelino!
ResponderEliminarLindo texto, apesar de se sentir uma nostalgia, também senti uma magia, levou-me aos tempos mais remotos. No meu tempo de criança era um pouco assim, muito respeito nestes dias, mas para nós crianças também era um momento de alegria, não tínhamos de trabalhar no campo nem em casa, lembro-me que nestes dois dias as brincadeiras tinham de ser quase em silencio.
Hoje tudo é diferente, a humanidade perdeu um pouco da sua essência, esquecendo muitas vezes as suas raízes, o seu passado e os tesouros deixados.
Claro que hoje se o padrinho desse só uma fatia de folar aos seus afilhados, eles pensariam…para que quero eu isto? Se fosse dinheiro. Os tempos são outros, mas, cabe-nos a nós a missão de lhes transmitir esses costumes e tradições para que nunca sejam esquecidos.
Obrigada por este belíssimo texto que me fez recuar no tempo.
Um abraço
Eugénia Cruz
Olá Urbelino!
ResponderEliminarO seu texto fez-me lembrar , até há pouco tempo, a minha Páscoa vivida em Longrova e nas terrinhas dos meus avós da Pestana e da Quinta do Falhas, que pertencem à mesma freguesia( de Longroiva, é claro!). O que eu gostava mais de fazer nesse dia era correr as casas todas, de uma ponta à outra. Era tradição toda a população ir atrás do Padre e da cruz para dar o aleluia. Curiosamente, tanto na casa do meu avô paterno, como o materno, era a última paragem dessa romaria.
Depois que faleceram,só voltei a cumprir essa tradição um ano depois. São tempos que já não voltam atrás...
Abraço, Susana Falhas
Sou do Brasil, mas gosto de vir até aqui sempre.
ResponderEliminarBelos textos e comentários.
Abraços da nova amiga do Brasil.
Urbelino
ResponderEliminarApesar de as minhas vivências de infância serem muito diferentes, porque como é sabido o povo Alentejano não era muito dado a essas práticas religiosas, delicio-me a ler e a conhecer os costumes do nosso Portugal profundo!
Apesar de pouco dados a rituais, o Alentejano tinha a sua fé e ,na minha casa , lembro-me que se fazia um minuto de silêncio às 15h de 6ªfeira Santa, supostamente a hora da morte de Jesus!
É sempre um prazer ler os textos que evocam práticas religiosas por este nosso querido Portugal!
Boa sorte!
Um abraço
Ãlcinda
Texto, retrato fiel dos costumes da época. Penso, digno duma análise sociológica, que eu não sei fazer e, por isso, vou deixar, isso sim, algumas considerações de ordem pessoal.
ResponderEliminarFez bem em escrever “evolução” (entre aspas), porque por vezes aquilo a que chamam modernidade, não são mais do que “modernices” que nada acrescentam ao então existente, antes pelo contrário.
Diz, “À época, a igreja católica, forte aliada da política do Governo”. Isso é de todas as épocas e, agora, só o não será quando não dá jeito! A ela ou a ele (Igreja e Governo)! Hoje em dia fica bem ao Governo, e não só, dizer ser contra a corrente religiosa mas que de vez em quando dá jeito, lá isso dá! Porque foram o Dr. Mário Soares (?) e esposa a Roma? O seu filho estava em perigo de vida!
Porque dá o Governo tolerância de ponto aquando da visita do Papa?
Porque se é contra o baptismo das criancinhas, coitadinhas, alegando que isso é coisa para elas decidirem mais tarde e se aceita que, logo a seguir ao parto, se preencha a ficha de inscrição do “neófito” no clube da preferência do papá? Será que o nome do clube já está inscrito no genoma?
O que me parece ser certo é que “cada cidadão cumpria os preceitos religiosos, por crença e devoção”, não por crendice ou imposição dos governos, muito embora como é lógico estes tenham influência em tudo o que nos rodeia, não só na religião, e se sirvam disso.
É, também, de todas as épocas que em tudo pode haver exageros e a religião (as religiões) não está isenta disso. Daí até transformar uma celebração religiosa do maior significado, e não só para os religiosos, numa mera “festarola” onde se oferecem “coelhinhos de chocolate que vão com o avô ao circo” ou se aproveita para ir “trabalhar para o bronze” numa qualquer praia tropical, vai um passo muito grande.
Isto, não se trata de saudosismo, nem nostalgia!
Acresce a isto que a própria Igreja criou uma nova categoria de católicos, os não praticantes (onde eu me incluo), seja lá o que isso for e eu não o sei exactamente. Se os praticantes são os que assistem à missa, então, quer dizer que os que assistem a um jogo de futebol também praticam futebol? Reduzir a prática cristã à presença assídua na Missa, parece curto! A prática cristã tem que ser muito mais que isso e muito poucos a conseguem, por muitos governos que a isso pudessem obrigar!
A Semana Santa, para fazer jus ao nome, deve ter, pelo menos, o respeito por quem, segundo dizem, deu a Vida por nós. Isto para “O Domingo de Páscoa aspergir alegria nos corações das gentes”.
As minhas desculpas pelo alongar do comentário.
João Celorico